– Senti mesmo como se tivesse perdido meu corpo,
Dom Juan.
– E perdeu.
– Quer dizer, eu não tinha mesmo corpo?
– O que é que você acha?
– Bem, não sei. Só posso dizer-lhe o que eu sentia.
– É só isso que existe. Na realidade… o que você sentia.
(Carlos Castanëda e Dom Juan.)
Em “Os ensinamentos de Dom Juan”
Carlos Castanëda.
Carla, ao abrir a janela de manhã, sentiu que o frio lhe resfriava o nariz. Nenhum azul: somente o cinza, o branco e as árvores petrificadas.
Estremeceu encolhendo os ombros, enquanto apertava o quimono contra seu corpo magro. Teve, repentinamente, uma sensação de alegria enganando no peito, mas que se desfez tão logo o relógio gritou na cabeceira da cama. “Muito tarde”, exclamou baixinho. O quarto perdia sua intimidade no fio da janela aberta, perdia seus odores e quentura. Todavia, como ela própria, permanecia ainda morno.
O armário do banheiro estava aberto, os vidros alinhados nas prateleiras, e havia um perfume a rastejar pela frialdade dos ladrilhos. Carla foi até o grande espelho sem moldura que tomava toda a parede. Deixou cair o quimono. Ficou olhando-se nua na distância do reflexo, a mulher do outro lado a olhar para ela. Surpreendeu-se, então, fria, consciente de seus pés no chão. Abriu o chuveiro com um esticar de braço. Displicentemente, prendeu os cabelos à nuca, estudando, no ato, as axilas bem raspadas. Dilatou as narinas de modo sensual, para ver o efeito. Gostou de si mesma e se colocou sob a ducha. A boa sensação da água.
Deixou que a água a possuísse, que a fizesse de cristal. Largou-se efetivamente ali, sem tempo, sem desejo de ter tempo. Urinou, com calma, o líquido escorrendo-lhe pelas pernas, fazendo-se mais quente que a água. No banheiro, somente o som do chuveiro elétrico.
Relaxava, mexendo os ombros vagarosamente. A festa começou a surgir em sua mente, numa lembrança fugidia. Um filme nebuloso, antigo. De início, as pessoas e seus rostos pálidos; depois, as mãos das pessoas segurando copos. Explosão de risos, música calma.
Sentira-se bem, ao tomar o primeiro uísque, a bebida esquentando em seu íntimo. Vagueara entre as pessoas, os olhares, tentara degustá-las. Acenderam-lhe um cigarro; tragara forte.
Havia saído para a varanda, sem pressa, mas com uma sensação inconfundível na medula, um prazer transparente a cortar-lhe o peito. Seus músculos estavam afrouxados, como se ela dormisse. Não pronunciara, até aí, uma só palavra. Nesse momento, viu o rapaz. Na frente dele, meio a encobri-lo, uma planta vermelha, subindo de enorme vaso. Alguns
bancos espalhavam-se sob a noite, brancos. Ela se deixou em um deles. Refletiu que aquele rosto lhe era familiar. Como se o visse sempre, mas sem muita atenção. Baixara a fronte e, subindo o olhar, ele estava ali, muito junto, seu corpo esguio e presente.
– Você tem andado o tempo todo pela casa – Disse o rapaz. – Isso não é bom.
– Como?
– Eu não tirei os olhos de você. Gostaria que pudéssemos conversar.
– Conversar…
– Meu nome é Alex.
Ela o fixava, tendo a impressão de que não conseguia decifrar a cor de seus olhos. Talvez um tanto azuis, mas de uma tonalidade dispersa. Como se inalcançáveis. O rapaz olhava firme, perscrutando.
– Eu disse que…
– Não importa. Eu quero você. E você será minha.
– Não pretendo ser.
– Você será.
Carla desligou o chuveiro. Envolvida na toalha, sem enxugar-se, seguiu para o quarto.
Começou a se vestir lentamente, metendo-se na calcinha, na calça de brim, na blusa branca.
Não pôs sutiã. Em seguida, como se quisesse fugir de seus pensamentos, pegou a bolsa pequena, escovou os cabelos e correu pelas escadas, enquanto, atrás, a porta batia automaticamente.
A rua, cheia de sons e veículos, tocou-lhe a percepção. Os cheiros todos feriram-lhe as narinas. Um desejo rápido de voltar ao apartamento e estar só passou-lhe pela mente; entretanto, sem esforço, seguiu na direção de uma lanchonete.
A manteiga derretia no pão; o café estava forte. Devorou a refeição com prazer, quase esquecida de tudo em volta. Foi surda durante alguns instantes no simples ato de comer. Ao pagar a conta, todavia, a cidade engoliu-a de novo. As lembranças fugidias pressionavam levemente. Esteve no ponto quase por dez minutos, até que, com satisfação, viu-se sentada
em uma das poltronas do ônibus e abriu bons olhos para apreciar a vida.
Gostava daquilo: O ônibus deslizando, a cidade distante, o sentido de perspectiva e conforto. Lembrava-se, marcantemente, das têmporas do rapaz: transpiravam tensão. Não algo doentio, mas uma sensação de calidez, como se ele pudesse ousar, sem pudores. Como se tivesse poder sobre os outros. A tonalidade dispersa dos olhos, talvez azuis, irritava, por não permitir alcances. Oferecia insegurança e fascínio. Mãos de dedos longos, mãos brancas, de pianista. Mãos que haviam tocado seu corpo, que a haviam tocado por inteiro, com força. Ele tinha nariz adunco. “O nariz era adunco, mas bonito”, pensou. Deixara o banco na varanda um tanto sufocada, fora à mesa principal transbordante de salgados e bebidas e servira-se de uma boa nova dose de uísque. Pedira outro cigarro a qualquer pessoa e, sem atinar porquê, tentara evitar sentar-se no raio de visão do rapaz.
Sabia-o lá fora.
Circulara pela festa, entre as pessoas, divertindo-se na calculada solidão que imprimia a si mesma. Afinal, achou um canto mais escuro, no qual se meteu quase escondida. E permaneceu dispondo das expressões das pessoas, as caretas, os risos, na satisfação de fazer-se só. Ela poderia ter ficado todo o tempo naquele canto de festa, sem tempo.
Alex surgiu num relance, de repente. Colocou-se na frente dela; aproximou o corpo comprimindo-a. Beijou-lhe na boca um beijo quente e longo. O copo despencou da mão de Carla, o cigarro tombou, mas não houve qualquer som. Ele perscrutava já seu colo com lábios rápidos. Então, o vestido vermelho que sempre desejara e nunca tivera foi levantado e ela foi penetrada. Uma lâmina de dor e prazer machucando-lhe o íntimo. O movimento de ir e vir sufocando-a num crescente incomparável. O rapaz, ela, ambos explodindo no gozo.
A boca vazia de dentes do motorista sorria. Todos olhavam para ela. Chegara ao serviço. O motorista a conhecia da rotina do horário e punha nela aquele sorriso oco e silencioso, para avisar que haviam chegado. Carla caminhou por entre os bancos e caras.
Viu-se espremida entre muitos hálitos no elevador. Quando foi despejada no último andar, Renata, a amiga, estava aos seu lado.
– Querida, você estava ótima, ontem!
– Como?
– Ué, Carla, aquele “four de ases” foi demais! O Paulinho ficou louco!
Marta fixou a outra. O jogo de pôquer na noite anterior. Haviam jogado bastante. Ela fora para o apartamento já tarde, por volta das duas. E caíra na cama num sono profundo. De súbito, sentiu uma cólica descendo-lhe pelo abdômen.
Quando, à noitinha, voltava para casa, e descendo do ônibus, viu o rapaz da
tinturaria, de uniforme vermelho, firme sobre sua bicicleta. A figura familiar do entregador de roupas, sempre a entrar e a sair do edifício. Ele passou agilmente, sorrindo para Marta, com seus olhos de uma tonalidade dispersa, talvez azuis, e com uma certa tensão nas têmporas. Olhava, apesar de sua figura fugidia, cheio de segurança, perscrutando.
De qualquer forma, sempre fora para mim um grande prazer olhar a casa. As colunas laterais eram poderosas e os jardins em torno pareciam tomá-la nos braços, assim como se embala uma criança: carinhosamente.
Em todas as noites que estive a observá-la e à sua gente, quando não chovia, a lua vinha como sempre mágica, ora cheia, ora crescendo, mas vinha como pano de fundo ou proteção à casa que eu observava.
Do meu apartamento pequeno, olhando a casa de frente, eu ia aprendendo como era fácil saber da vida dos outros e que o ato de viver, principalmente quando o levamos a efeito junto com outras pessoas, nem sempre é muito apreciável.
Viviam nela um homem velho, dr. Caldeiras, eu soube, absorto a maior parte do tempo de sua vida na leitura de livros, como se, fora deles, não houvesse muita coisa que pudesse ser aproveitada; duas jovens, Luana e Lara, com seus corpos ágeis e cuja eletricidade eu podia receber cá do meu apartamento, como um frêmito que havia nelas e em mim próprio. A doçura dos gestos, as brigas tolas entre si, que explodiam, às vezes, em gargalhadas ou em uma zanga que pouco demorava. A maior parte do tempo estavam ausentes, em escolas, supunha eu, ou em outras atividades.
E havia, Berta, a empregada, arrumadeira eficaz ( eu sou testemunha), que estava sempre por lá, durante todo o dia, mas que desaparecia à noite, pelo que eu inventei em minha mente, para uma pequena casa nos fundos, ou um quarto, onde se recolheria às novelas na tv. Não sei porque as penso as empregadas assistindo à tv. Acho que é preconceito; e assistindo às novelas.
“Edícula!” Edícula é o nome para essas pequenas casas que ficam nos fundos de outras maiores e poderosas.
Então, pude constatar que o homem velho era o pai das meninas, e que não havia uma esposa lá, pelo menos desde que eu me dispusera a tomar conta de suas vidas. Em pouco tempo eu podia discernir quaisquer conversas entre eles, mesmo que falassem baixo, através de minha atenção total e de uma leitura labial que a gente aprende com a prática. E, é claro, eu usava um poderoso binóculo.
Berta falava mais alto do que os demais, e eu gostava dela preferencialmente aos outros. Era bem agradável, de vez em quando, apreciar as meninas em seus banhos, cujas chuveiradas eram deleite para mim. Por que se deixavam ver? Não sei. Talvez não tivessem noção de que alguém pudesse observá-las do predio pequeno em frente e, nos dias úteis, com as luzes apagadas em apartamentos de moradores que só retornavam a eles muito tarde após seus trabalhos. Desta escuridão, eu a tudo acompanhava.
Mas o que interessava, de fato, ali naquela casa ? O cofre do dr.Calderas. Em mais de uma noite ou dia, mas não com frequência, pude vislumbrar, quando ele o abria, uma quantidade notável de notas verdes em seu interior.Eu sabia que havia muitos dólares naquela caixinha e sabia também que, em primeiro lugar, era preciso ter-se a senha dela.
É, é isso: eu pretendia furtar toda aquele dinheiro do dr. Caldeiras e de suas filhas. Comprar a poderosa lupa que comprei foi um sacrifício ( o binóculo já não me satisfazia), mas o fiz, e ao constatar a aproximação que ela produzia através de minha janela, quando o doutor abria o cofre lá adiante, era algo impressionante. Eu pude saber todos os números da senha enquanto eram digitados, concomitantemente ao movimento da fechadura, assim como se os estivesse lendo na mnha frente.
Então, vieram as máscaras. Eu ia dizer sorrateiramente, mas não, de forma contundente a pandemia envolveu a Terra, assim tão amplamente, como quando um pássaro atravessa oceanos pleno de liberdade. A pandemia veio para esconder os rostos das pessoas e, quem sabe, a vergonha de ter-se tanto falado e deixado que ela se fizesse tão poderosa.
Desde que me surgira a idéia de subtrair os dólares no cofre da casa em frente, eu sabia que seria fácil fazê-lo, porque conhecia, religiosa e estudadamente, os hábitos de todos lá. Dr.Calderas ía todas as manhãs – pude verificá-lo – à Biblioteca Municipal para umas pesquisas literárias, já que era avesso à impessoalidade da internet. Como eu, talvez ele só quisesse tocar nas folhas dos livros, para sentir que estava vivo. Algumas pessoas vivem nas histórias dos outros.
As meninas saíam, é claro, todos os dias, para o colégio. E Berta ia às compras cada quinta-feira de manhã e gastava nisso, cronometradamente, 3 horas. Lá pelo meio- dia ela retornava, de forma infalivel, junto com a entrega do mercado no qual estivera, pois não aguentava o peso das compras.
Claro que ficou resolvido que eu faria o trabalho em uma quinta-feira de manhã. Relutei durante um bom tempo, pois sabia da existência de cãmeras por todos os lados, dentro da área do jardim na casa e na rua em frente a ela.
E de repente, esse problema já não existia. Todos estavam usando máscaras, todos éramos iguais com os rostos cobertos. Eu entraria na casa ( a porta dos fundos ficava fechada, mas com a chave posta em um vaso de plantas ao lado), chegaria ao cofre, usaria os números da senha gravados em minha memória, pegaria os dólares e sairia para a rua, invisível. Ou, por outra, escondido por uma máscara, em plena luz do dia.
Enquanto eu ia refletindo sobre o meu plano, que a pandemia viera acolher com seu manto de proteção, as mortes tornaram-se uma presença avassaladora. Como formigas pisadas pelos pés dos homens, as pessoas começaram a morrer em todas as partes sobre a Terra, e muito próximo de nós, em nossa casa.
Nessa ocasião,não se falava em total recolhimento, assim, eu contava com a ausência de todos na casa às quntas-feiras, no horário em que Berta fazia as compras.
Algo aconteceu, então. Subitamente, eu já não era aquele que planejara o furto. A pandemia me facilitaria o uso da máscara, mas não permitiria que eu me escondesse atrás dela, depois que o virus se fosse. Aqueles dólares não teriam nenhum valor em um novo Mundo, porque um novo Mundo terá sido construído sobre a morte de milhões de pessoas.
Eu já não queria furtar nada, porque a ficção engendrada em meus neurônios tornara-se outra, uma que me permitia ser melhor. Com horror, constatei que muitos se aproveitavam da pandemia para usurpar vidas, em palavras e em atos diretos. Havia gente que manipulava os respiradores que salvariam vidas ante a presença da pandemia. Eu precisava ser melhor para merecer uma eventual sobrevivência.
Alguém diria, se pudesse ter sabido de minha intenção, algo como “ aquele ladrãozinho querendo ser honesto? ”. Eu não saberia responder a isso, mas eu era um outro.
Continuei apreciando a casa, o velho homem e suas filhas; e Berta, que falava tão alto. Mas digamos que fosse algo respeitoso. Só não consegui deixar de espreitar as meninas tomando aqueles banhos. Alguém diria também :” Ninguém é perfeito!”
Lin de Varga
O maior despertar é o de constatar-se que se trata de uma peça, uma encenação.
A diferença entre uma peça com atores, é que não há a intenção de encenar.
Todos os diálogos estão lá, escritos em cada cérebro, e o roteiro vai sendo mostrado à medida que a peça se desenrola. Não pode ser refeito. Pode terminar.
É interessante: o roteiro só se faz escrito, depois da consumação. E, então, é claro, já foi vivido.
Você não pode jamais retornar uma página para corrigir uma palavra. As palavras são ditas, inexoravelmente.
Uma notável peça que não pode ser reinterpretada.
Tal constatação é o que se chama despertar. Se você disser “iluminação”, talvez ainda esteja atuando na peça, mas não sendo um ator, atua diretamente (e só pode fazê-lo assim), com seu ego.
Despertar é constatar-se tudo isso.
Não é nada cheio de luzes ou fogos de artifício. Trata-se de uma calma infinita, um vazio não criado, um “ser” sem ter vivido.
Há uma compaixão sem aprendizado, uma alegria sem causa, um nascer para a Eternidade.
E só aí você sabe a que veio.
Lin de varga
Por quê, se é clara a notável abrangência disso que chamamos mente, o espaço infinito que constatamos nela como realidade, além da programação mental?
Só para argumentar, porque não se quer ferir o dogma de ninguém, nenhuma Igreja, nenhum líder religioso, nenhuma crença. Aliás, o que seria da gente esmagada por lamaçais se não fosse uma crença qualquer?
Mas, como eu dizia, só para argumentar: E se nos foi dado só este VISLUMBRE rápido da magnitude do Universo? E se vamos, efetivamente, desaparecer para sempre com nossos corpos?
Isso não seria um milagre tão extraordinário como aqueles atribuídos a Jesus?
Vocês percebem? Para mim, o notável é ser só semente, crescer como crescem as árvores, sem uma ficção sequer e desaparecer na Eternidade
Citando Bob Adamson, “É uma ilusão que “você” exista – a entidade “você” é imaginada. A imaginação que “você” existe como algo ou alguém separado é a causa da aceitação ou rejeição de algo conhecido; é uma ilusão contando a história de sua própria decepção.”
Desculpem. Quando me dei conta da ficção que eu era como conteúdo mental, que o milagre estava em ser inteiro no agora, e senti então que amava a tudo e a todos com um amor que jamais antes adivinhara, estava livre e não havia caminho de retorno.
Lin de Varga
#vocejafoianalisado.com
“O Ajustamento da Dobradiça”, Amazon/Kindle.
Nós temos em nós um extraordinário tesouro de consciência e amor.
Esse tesouro é a Presença. Não a presença do indivíduo ao qual nos identificamos, muito frequentemente, mas uma Presença mais vasta, mais livre, já perfeita, já terminada.
Nós não somos separados dela; ela não é uma outra presença, uma outra consciência.
Ela é aquilo que nós, verdadeiramente, somos.
Mas , simplesmente, nós não lhe prestamos atenção.
Nós olhamos além, ao longe, nós a perdemos de vista .
No entanto,esta Presença é tão próxima que nada dela nos pode separar.
Não há sequer lugar para um caminho espiritual.
Esta presença é verdadeiramente terapêutica, além de tudo aquilo que nós podemos imaginar.
Aquilo que nós procuramos, nela nós achamos :
a alegria,
o conhecimento,
o amor,
o sentido…
Eu jamais teria pensado que uma tal plenitude fosse possível.
Como dizia Douglas Harding, aquilo nos é dado: ” it’s given.”
Esta Presença nos pede justamente um pouco de atenção .
uma atenção dirigida à fonte.
José Le Roy
Tradução Lin de Varga